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sábado, 4 de janeiro de 2014

Devia Ter Dançado


Caixa de Luz "Desisto" da colecçāo Auto-Retrato: Memórias

Sāo histórias que se contam. Nem sempre. Quero dizer: de tanto lembrar uma recordaçāo por vezes deixa de ser uma memória para se transformar na história repetida que se conta sobre aquele momento, sobre aquele tempo de infância. Falo nisto porque ontem voltei a um lugar onde já nāo ia há muito, mesmo muito tempo. 

Ali sentada, ao olhar pela janela lembrei aquilo que nāo sei se é a história real ou já apenas a memória da própria história. Dali via o teatro onde pela primeira vez pisei um palco. Devia ter os meus 6 anos. Mas repito, esta pode ser a história da memória e nāo o relato certo e justo para o acontecimento real. Porque falo nisto aqui? Porque tinha 6 anos, sentia e vivia nāo de acordo com a idade que tinha. 
O que ficou em mim do tempo é o que conto aqui:

Tinha aí uns 6 anos. Era muito envergonhada. Ninguém acredita mas sempre fui. Agora menos. Agora melhor. 
Andei no ballet uns anos no colégio. À hora de almoço lá ficava eu no meio de muitas meninas, grandes e pequenas, maiores, menores, gordas, magras, altas, baixas, mais velhas ou mais novas. Mas lá estava eu com o recreio reduzido de 1h30 a 45 minutos. A ideia encantava-me. Sonhava com a dança, os tutus e as piruetas. Um problema: nāo me mexia. Podia e devia ter dançado. Mas nāo me mexia. Em mim desde cedo o pânico de errar. Porquê? Porque ali estavam as mais velhas que já faziam ballet desde a minha idade. Porque elas, essas sim, já sabiam o que estavam a fazer. Olhava para elas e pensava que era suposto eu já saber fazer tudo aquilo. Olhava e nenhuma me explicou que eu estava ali para aprender a fazer aquilo e que ainda nāo tinha de saber fazer. Lembro particularmente a Joana. A Joana nāo dançava, a Joana levitava. Fazia tudo. E tudo com leveza. Para além do resto, eu ainda tinha medo da professora. Ela era uma elegância e penso que se chamava Manuela. A Manuela tinha sempre consigo aquilo que eu achava ser uma "bengala". Era maravilhosa pela sua postura direita e elegante. Sempre. Ela e a sua "bengala" numa das māos para ensinar a postura correcta às meninas de tutu. Desde a posiçāo dos dedos à posiçāo do pé. Tinha medo dela. De olhar rijo e ombros direitos nāo abria um único sorriso para mim. 
É o que me lembro... De ficar à porta em grupo à espera e sentir que nāo pertencia ali. Nem à Manuela nem a nenhuma delas porque era pequena demais para me aturarem. Fui aguentando porque tinha pedido à māe para ir para o ballet. Mas depois nāo me conseguia mexer. Durante bastante tempo. Por vergonha. Podia e devia ter dançado. Nāo tudo. Nāo. Mas ballet.
Nāo o fiz. Acabei por nāo o conseguir fazer em tempo útil. Tenho as melhores recordações do colégio mas ali falhei e o Colégio falhou. Sei hoje que podia e devia ter dançado. Bastava que aquela pressāo me tivesse sido aliviada por uma professora com a sensibilidade de um sorriso. Bastava que aquela timidez fosse percebida por alguém ali com olhos atentos. Bastava que aquela classe fosse para a minha idade e nāo fossemos todas tāo diferentes. Bastava que eu tivesse dito aos meus pais o que sentia. Bastava tanta coisa. Mas eram poucos os meus anos. E aos meus pais nem eu nem ninguém lhes disse.

Ontem ali sentada à janela, lembrei tudo isto porque naquele teatro subi ao palco com essa classe de ballet. O Teatro cheio de gente, cheio de pais e avós. A barriga doía porque eu tinha de ir, e sabia que nāo sabia, que nāo queria, porque ia fazer mal, porque todos iam ver, porque as "grandes" faziam bem e eu fazia mal. Porque nāo fazia. Porque ninguém disse que nāo era suposto ter nascido a saber fazer. Porque ninguém avisou que era preciso fazer, tentar e errar para aprender. Ninguém disse. Nesse dia, já no palco, claro que entrei ao contrário, virava para a esquerda quando devia ir para a direita, ficava quieta quando me devia mexer. Nem sei se mais alguém se lembrará disto. Eu lembro assim. O dia em que pisei pela primeira vez o palco foi um dia de horror. Em que me salvou a beleza dos tutus rosa, das sapatilhas de principiante e nāo as de pontas como as das "grandes", bem como o meu penteado cabelo loiro com uns tótós perfeitos feitos pela Joana "grande". Quando acabou o tormento fiquei feliz porque já estava. Tinha acabado. Nāo fui mais para o ballet tentar fazer nada. Fui apenas até ao dia em que a minha māe me perguntou se eu queria mesmo continuar e eu ganhei coragem para dizer que nāo. Ali nāo queria. Devia ter dançado, mas nāo ali, no sítio certo quem sabe. Talvez esse sítio nāo existisse. Hoje sei que nāo era falta de jeito a minha. Era medo. Medo e vergonha. Vergonha e responsabilidade. Responsabilidade de querer fazer bem. Nāo fiz. Eram 6 anos. 

Meu amor, quem sabe um dia vais ler isto. Serve este momento para te dizer:
Que eu consiga a difícil tarefa de te entender sempre. De te ler. Acima de tudo naquilo que nāo vais ser capaz de me dizer. Que eu perceba em ti tudo aquilo que nāo terás a capacidade de entender. Acima de tudo, o que em tempo útil, e por ti só, nāo vais ser capaz de ver. Nem de saber.
Meu amor. Nascemos para aprender.  

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